Pesquisar neste blogue

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Mentiras, falsidades e omissões



Políticos, intelectuais, colunistas, comentadores, pronunciam-se muitas vezes sobre o serviço público de televisão (SPTV) e sobre a RTP usando números e pressupostos que não correspondem à realidade, e que, por isso, viciam o debate e as conclusões. Um artigo recente de Marques Mendes (MM) é disso um bom exemplo. Sobretudo porque tendo tutelado a pasta da TV no período em que se cometeram as primeiras decisões que começaram a endividar a RTP (fim da taxa e obrigação de venda ao desbarato dos emissores), MM revela, 20 anos depois, que não soube aprender com os erros que teriam sido fáceis de evitar na altura e que, hoje, deveriam ser-lhe fáceis de reconhecer.
Vejamos o que escreveu MM.
1. "Em termos de programação, nada distingue a RTP das suas concorrentes privadas."
Só por ignorância, cegueira ou má-fé se pode fazer esta afirmação. E, vindo de quem vem, é grave. A verdade é que não há paralelo possível entre a grelha da SIC e da TVI, que têm uma "programação horizontal" (a mesma programação ao longo da semana), e os canais públicos (RTP1 e 2), que têm uma grelha "vertical" (programas diferentes nos vários dias da semana, especialmente no prime time). Seria ocioso explicar-lhe esta nuance que toda a gente que domina estas matérias conhece; mas, para alguém que teve responsabilidades políticas nesta área, é grave. Depois, porque, como alguém disse, "os canais públicos dirigem-se aos cidadãos, os comerciais aos consumidores".
Mas porque será que a RTP não é melhor? Primeiro, porque nenhum governo, até hoje, lhe quis assegurar a independência política nem económica, como exige a Constituição. E o que é que o PSD fez, durante os anos em que foi governo, e mesmo na oposição, para melhorar a sua independência e o seu desempenho?
Segundo, porque os administradores, desde há 20 anos para cá, são gestores com formação económica, mas nenhum sentido do que seja televisão e muito menos serviço público.
Depois, porque a RTP tem vivido sempre na incerteza sobre o montante e a origem do seu financiamento, o que a torna vulnerável às interferências comercias, instável sobre a encomenda de programas e sem recursos financeiros para produzir obras de qualidade (nomeadamente na área da ficção, onde o nosso défice é colossal, e que é aquilo precisamente que é caro em TV, mas que é uma das faces distintivas da programação).
Finalmente, porque o escrutínio do seu desempenho é muito débil. Com os poucos poderes que tem, o Conselho de Opinião não tem capacidade para acompanhar a programação e muito menos para se fazer ouvir.
Mas, como governante e na oposição, MM tem imensas responsabilidades naquilo de que, agora, se queixa.
2. "A RTP Internacional é medíocre."
O que se diz atrás vale também para a RTP I, que, obviamente, não está isenta de críticas, mas que cumpre um serviço que só uma estação pública pode assegurar. Como se reconhece, aliás, em todos os países da UE e em todos os textos da Comissão, Parlamento e Conselho, alguns dos quais, enquanto ministro, MM subscreveu. Será também ocioso lembrar-lho.
3. Os "défices e mordomias" da RTP.
Quanto aos défices, eles foram o resultado inevitável de políticas desastrosas, irresponsáveis e lesivas do erário público, conduzidas quer pelos governos PSD (de que MM fazia parte) quer por governos do PS, sobretudo o do Eng. Guterres, que decidiu reduzir o tempo de publicidade à RTP1 e eliminá-la na 2, sem ter depois liquidado integralmente as "indemnizações compensatórias" que inscreveu no orçamento para a compensar dessa perda. A dívida passada da RTP é, por isso, quase na totalidade, uma dívida do Estado e não da empresa.
Quanto às mordomias, era bom que MM se explicasse: quais e onde? E se existem (o que admito), é altura de lhe perguntar: o que fez o PSD, no poder ou na oposição, para lhe pôr cobro?
4. O "fardo financeiro."
Está respondido atrás. E não deixa de ser curioso que tenha sido um ministro do seu partido, Nuno Moraes Sarmento (NMS), durante o curto consulado de Durão Barroso, a resolver os problemas criados, como vimos, pelos governos anteriores, e a sanear a empresa. É lamentável que este Governo não tenha aprendido com o seu exemplo.
5. "Estado bom e privado mau", que MM considera "um resquício da Revolução a inquinar o debate"!
Como diz judiciosamente Paula Teixeira da Cruz, do seu partido (mas que não toma o seu partido): "Está por provar que o sector privado (...) tenha maior eficiência que o sector público." Ao Estado o que é do Estado, ao mercado o que é do mercado. O Estado tem de gerir bem as empresas estratégicas que são necessariamente públicas; ou porque são "monopólios naturais", ou porque o mercado, só por si, não consegue assegurar as obrigações pelas quais o Estado deve zelar: na educação, na saúde, na justiça. E na televisão.
Quanto aos "resquícios da Revolução", pergunto-me: a que se refere MM, com azedume e desprezo? Ao 25 de Abril?
6. "A SIC Notícias, a TVI 24 e a TSF prestam um bom serviço público."
MM confunde os canais temáticos de acesso condicionado com os canais free to air, os únicos que estão em discussão. É uma confusão grave para quem teve a tutela da televisão e que, lamentavelmente, alguns políticos, intelectuais e comentadores cometem levianamente.
7. As restantes diatribes e acusações relevam do mesmo preconceito, da mesma ignorância e da mesma demagogia. Citemos algumas pérolas: "O desprezo pela coerência e pelo dinheiro público." "As rendas de milhões pagas à RTP." "Uma empresa que custa ao erário público quatro vezes mais do que todo o orçamento da Secretaria de Estado da Cultura." "Respeito pelos contribuintes."
MM é um homem arguto e um político experiente e com responsabilidades. Também por isso, além de rigor, ficava-lhe bem um pouco de recato e de pudor neste debate.
Sobre o buraco financeiro que NMS encontrou em 2002, remeto para os pontos 3 e 4. Mas esgrimir argumentos com expressões como "rendas de milhões", ou com comparações com outros orçamentos (em que país da Europa o orçamento da cultura é comparável ao da televisão pública?), carece de seriedade. A RTP, com os seus 17 canais, custa aos portugueses 27 euros por ano, uma das contribuições mais baixas da Europa, para mais tendo em conta os seus limites apertados no acesso à publicidade.
A "indemnização compensatória" foi um estratagema encontrado pelo Governo em que MM participou para escamotear a medida populista de abolir a taxa; e aumentada, depois, pelo Governo de Guterres para compensar a entrega de uma fatia importante da publicidade à SIC e à TVI.
Com NMS, a publicidade que restava ficou cativa para pagar essa dívida do Estado para com a RTP, uma vez que, como vimos, o Governo de Guterres não pagara grande parte das verbas que inscreveu no orçamento. Muito haveria a acrescentar. Mas era preciso que houvesse aqui interesse num debate sério e esclarecedor e não a tentativa de proteger o ministro Relvas, cujos anúncios sobre o futuro do SPTV pecam, no mínimo, pela falta de coerência - a mesma coerência que ele exige aos seus interlocutores.

ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS in Diario de Noticias 10/09/12

Sem comentários: