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sábado, 17 de setembro de 2011

Repensar a Europa

MANUEL MARIA CARRILHO30 Junho 2011
O conformismo é o maior problema que a União Europeia hoje enfrenta. A "ideologia europeia", que foi durante décadas um símbolo do futuro, tornou-se numa amálgama de impasses, de dogmas e de preconceitos, incapaz de pensar tudo o que belisque os seus interesses.
As ideologias são assim, têm períodos de vitalidade e fases de declínio. E a sua decadência revela-se sempre num sintoma preciso: é quando as respostas aparecem antes das perguntas, e as soluções se impõem antes de se conhecerem os problemas. A União Europeia está nesta fase. E a deriva deste último ano e meio parece aproximá-la cada vez mais do colapso, não se vendo nada que a faça arrepiar caminho, como o Conselho Europeu da semana passada veio confirmar.
Nem a iminência de uma explosão na Grécia, tão vítima de si própria como da ortodoxia do programa que lhe foi prescrito no ano passado, já que, como há dias sublinhava Martin Wolf no Financial Times, a actual situação grega é - ao contrário do que tantas vezes se diz - mais resultado da ineficácia do plano da troika, do que do seu incumprimento. Nem o alerta do FMI, a chamar a atenção não só para o possível contágio europeu a partir da situação grega, mas também para o risco de contágio global a partir da crise do euro. Nem a convergência sino-americana, com a China a sublinhar num tom inédito a "importância crucial" que para ela tem uma rápida solução da crise grega, e os Estados Unidos a reclamarem o imperativo de uma estratégia "a uma só voz" da União Europeia.
Apesar de todos estes alertas e apelos, a que é ainda precisa juntar o espectro de uma "tempestade perfeita" que poderá resultar, nos próximos tempos, da combinação da crise da dívida europeia com o risco de incumprimento dos EUA (a dívida americana ultrapassou já os 14 mil milhões de dólares), a inflação chinesa e a estagnação japonesa - apesar de tudo isto, a União Europeia continua paralisada.
Paralisada e a pisar ovos em cima da premonitória frase de Theo Waigel, o antigo ministro das Finanças alemão que prometeu aos seus concidadãos que "der euro spricht deutsch". E, entretanto, agudiza-se o impasse entre as duas saídas para a crise, a federal e a nacional, com o federalismo sempre a perder terreno desde os chumbos de 2005 aos referendos à "constituição" europeia, e o nacionalismo a ganhar constantemente novos adeptos por toda a Europa, seja em Inglaterra ou na Holanda, na Hungria ou na Finlândia.
É por isso urgente quebrar o conformismo de chumbo que se instalou na UE, que se arrisca a transformar a crise da dívida numa devastadora crise da própria Europa e que, acentuando a deslegitimação das suas incompetentes lideranças, terá consequências e proporções difíceis de antecipar. E para quebrar este conformismo e os seus dogmas, só há um modo: é o de voltar à "grande" política, isto é, às ideias que podem mudar o actual estado de coisas. E que terão de ser tão ousadas como fundamentadas.
Tal só será possível cortando com a ideologia sem ideias em que se tornou a "vulgata europeia", e elaborando uma nova agenda para a Europa. Uma agenda que exija que a Comissão Europeia deixar de se comportar como um dócil secretariado de um Conselho Europeu dominado pela Alemanha. Uma agenda que leve os líderes dos países europeus a falarem mais vezes e mais demoradamente entre si, e com as respectivas opiniões públicas, de modo a encontrarem e a formularem alternativas à ortodoxia dominante. Uma agenda capaz de federar os interesses e as ideias de diversos países, sem medo de confrontar a Alemanha ou de visar os seus pontos fracos. Uma agenda que avance com iniciativas credíveis e com propostas ambiciosas, e que abra os indispensáveis debates sobre as novas circunstâncias da globalização, os paradoxos do livre-cambismo, as opacidades da "financeirização" da economia ou o interminável (e contraproducente) alargamento da União.
E é muito que se pode fazer, com iniciativas de variada ordem: política, económica, financeira, social, cultural. Uma delas, e das mais urgentes, deveria neste momento ser relativa ao valor do euro, cuja excessiva valorização nos últimos dez anos tem beneficiado sobretudo à Alemanha, e a dois ou três aliados, e prejudicado todos os demais países da Zona Euro. E esta valorização teve, é preciso sublinhá-lo, um papel decisivo na perda de competitividade de diversas economias europeias, e na eclosão da crise das dívidas soberanas. (Note-se, a propósito, que a Inglaterra desvalorizou a libra, durante a crise financeira dos últimos anos, em cerca de 20%, sem que a inflação tenha ultrapassado 1,6%...)
Este é um dos caminhos por onde é possível e urgente avançar, se realmente quisermos que o euro fale outras línguas para lá do alemão. Outros, por exemplo, são a unificação da dívida (como Roosevelt fez em 1932), a emissão de "eurobonds" e a criação de um ministério das finanças europeu. A Europa precisa de uma nova agenda que só um franco e vigoroso o debate de ideias poderá viabilizar, criando condições para que se enfrente uma especulação que se faz cada vez mais à margem de todas as regras, e que está a tornar o mundo numa verdadeira selva.

 Fonte: dn.pt


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